10.12.05

-VANTAGENS & INCONVENIENTES
CAPITULO 1 - INTRODUÇÃO
O novo aluno nasce envolvido na rudeza; e só quando começa a fazer uso da razão é que principia a ter conhecimento das coi­sas. Chega à idade susceptível do ensino; cursa as escolas, aprende, sabe; começa aí a dar sinais de homem social. Porém, não é somente a doutrina dos mestres, que o coloca no estado sublime em que ele se torna apto para viver em sociedade; mas é principalmente o trato e a comunicação com os seus semelhantes (de cujas ma­neiras aprende a lidar com os homens) que o tornam homem também.
Deixa um Mancebo a casa dos pais a fim de frequentar a Aca­demia; aparece em terra estranha; todos os que o cercam são des­conhecidos; o vão receio, de tudo, apodera-se do seu espírito; o carácter de estrangeiro se divisa logo no seu ar. Acaso tem ele o direito aos auxílios daqueles que não se acham ligados com o es­treito vínculo da amizade? A baliza do prazer, que um homem sen­te em relação ao olhar do outro, pára somente naqueles, com quem temos alguma relação além da universal.
Não queira portanto o Mancebo, de novo académico, fazer ele só a excepção de uma lei universal!
DEFINIÇÃO
As praxes académicas são uma prática ou rito de iniciação numa nova sociedade, num novo estatuto ou estilo de vida, com sua hierarquia e normas próprias, sem dúvida críticas, mas si­multaneamente paralelas e até reforçadoras da estrutura social vigente. E importa efectivamente sublinhar, que todo o rito de ini­ciação implica necessariamente a reactivação mais ou menos in­tensa de conflitos inconscientes estruturantes. E que todo o ri­to de iniciação por visar uma metamorfose, uma mudança de forma de vida, exige a liquidação ou a morte, simbolicamente efectiva, da forma anterior em troca da entrada na fase de desenvolvimento seguinte, que, por inacabada, não garante desde logo a segurança que a fixação ao estádio anterior oferece. Aceitar o desafio do incerto e do inseguro e, sobretudo, aceitar a morte do passado, rompendo com a tranquilidade e protecção que ele representa, pa­ra que um novo aluno possa enfrentar, sozinho, desligado das amar­ras e apoios familiares, o desafio e os riscos do futuro da cons­trução pessoal no confronto dialéctico com os outros, eis a grande e fundamental exigência de todo e qualquer rito de iniciação, existente em todas as culturas, ditas "primitivas" ou "civilizadas", embora sob formas e versões diferentes. Todavia, o mesmo "esquema" sincro-diacronico e a mesma exigência dinâmica funda­mentais lá se encontram actuantes em todas elas e sob roupagens e ingredientes culturais diversos.
Nos cursos de formação de pilotos, quer na Academia quer nos outros centros de instrução de pilotagem da P.Á.P., a praxe é uma actividade indispensável. Pois serve para "limar arestas" nos no­vos alunos, no respeitante a vícios que se arrastam da vida civil, que são prejudiciais à vida de um futuro piloto militar.
As actividades praticadas nas praxes são essencialmente de cariz físico e psicológico. As primeiras englobam um vasto núme­ro de exercícios que ajudam, em grande parte, o desenvolvimento físico dos "infras" (l). As segundas são feitas ou praticadas através de conversas "mentalização", que vão enquadrar os novos alunos dentro de uma nova instituição; em suma, dentro de um no­vo estilo de vida.
Pode-se afirmar, que a praxe é além demais, um conjunto de normas não emanadas pelas entidades oficiais mas criadas e man­tidas pela convivência entre alunos, tendente à manutenção de tradições e regulamentação do próprio convívio sem dúvida um emanar do espírito das instituições onde ela existe.
(l) "infras", propriamente, são os novos alunos. Na Universidade de Coimbra existem nomes que são sinónimos de infra. Caloiro é o estudante de preparatórios e novato; é o estudante de 12 ano de qualquer faculdade. Este último é hierarquicamente mais antigo que o anterior.
As praxes académicas nunca foram, não são, nem hão-de ser actividades oficiais, mas sim oficiosas. O Comando sabe que elas existem e sabe também, que são um bom auxiliar do mesmo. Voltarei a focar e a debater este assunto no capítulo das Vantagens.
A PRAXE COMO DIREITO
Considero que a praxe é um direito que os veteranos têm sobre os novatos. Para tentar provar esse direito apresento seguidamen­te um estudo feito por Patroni – "O Código Civil Lusitano dá for­ça de direito ao costume longamente usado, é tal, que se deve guardar por direito, segundo a. Ord. 1.3.tit.64 no preâmbulo: Ora o costume de os veteranos praxarem os novatos é conforme ao espí­rito da Ordenação; logo pelo Código Lusitano se prova o direito de praxar. A Lei Áurea de 18 de Agosto de 1769, interpreta estas palavras da Ordenação e no § 14 requer três condições para a va­lidade do costume:
l) Ser conforme as boas razões, que se expli­cam no §9 da mesma lei;
2) ser tão antigo, que exceda o tempo de 1oo anos;
3) não ser contrário às leis em coisa alguma.
Examinemos, portanto, se o costume de praxar tem estes três requisitos essenciais. Ë uma boa razão, segundo o autentica a mesma lei no §9» aquela que se fundamenta nas leis políticas e económicas: Ora o estabelecimento das academias, é um dos objectos principais do sistema político e económico; logo, o estabeleci­mento é conforme a boa razão da lei. Não é contrário às leis em coisa alguma, aquilo que não repugna aos deveres que tem o ho­mem para com Deus, para consigo e para com os seus semelhantes: Ora praxar novatos não repugna à piedade nem à justiça. O costu­me de praxar nasce com a fundação das academias: Ora a academia Conimbricense é tão antiga que tem mais de 100 anos. Mas o costu­me, que tem os três requisitos da lei de 18 de Agosto de 1769 é tal, que se deve guardar por direito; logo o costume de praxar novatos deve-se guardar por direito".
O direito de praxar nos seus justos limites causa lesão?
Acho que não. Vem um novato frequentar a academia logo está sujeito à lei geral, que proíbe aos estranhos conhecer as pessoas com quem vão lidar "sem mais nem menos"; em consequência disso, o terror, o pânico apodera-se dele e tendo receio de tudo é bastante para ofendê-lo qualquer simples aceno de uni veterano. Um olhar de Um veterano escandaliza um novato. Mas que fundamento tem tal ofensa? Bem se vê que ela é produzida pela prevenção; porém a presunção só dá direito a quem o tem por isso pensa mal o no­vato, fingindo uma ofensa grave que não existe pois do vão te­mor não há desculpa justa. Neste caso o novato é que causa le­são ao veterano, fazendo mau conceito dele.
PRAXES ACADÉMICAS NA EFOS
A ausência de praxe está na razão directa de serem conhe­cidos os novos alunos. Ora, os alunos que frequentam os cursos da EPOS, já não são novatos na P.A.P. apesar de estarem numa situação de alunos, a grande maioria já se conhece, não neces­sitando, por isso, do convívio inicial ou praxe para esse efei­to. Não existem, no caso correcto da EFOS, exigências de meta­morfose que a praxe académica, enquanto modalidade ritual de iniciação, intrinsecamente comporta.
No dizer de Octaviano Sá: — "Em todos os tempos, os aca­démicos das nossas escolas fizeram "partidas" denotando a sua hora radiosa de mocidade". Como se sabe, o nível etário dos alunos da EPOS, já não é aquele que corresponde à hora radiosa
de mocidade a que se refere o escritor de "Nos Domínios de Mi­nerva".
O aparecimento de qualquer tipo de praxes numa escola co­mo a EPOS seria prejudicial para os alunos; pois não haveriam qualquer tipo de vantagens que noutras circunstâncias existem. Por que motivo as praxes académicas não seriam vantajosas nes­te caso? Porque dois fins se propõem os veteranos caçoando os novatos: Um, é dar matéria à jovialidade e cevar assim o seu prazer; o outro, é desenvolver e conhecer as faculdades inte­lectuais inovatórias, o que vulgarmente se interpreta de "des­mamar “infras". Ora, na EFOS não há "infras" na verdadeira acepção da palavra. Não havendo "infras" não podem haver praxes.

INSTITUIÇÕES COM PRAXES E INSTITUIÇÕES SEM PRAXES
Existem grandes diferenças entre as instituições em que há praxes académicas e aquelas em que não se verifica esta prática. Referindo-se a este assunto, João Falcato escreve assim em "Co­imbra dos Doutores" – "Em Coimbra eram as conferências, as for­maturas solenes, os doutoramentos brilhantes, os "honoris causa" de consagração – enfim o mundo da cultura –; eram as embaixadas do Orfeão e da Tuna, as guitarradas, as serenatas subentendendo amor— adoração — enfim o mundo do sentimento! Em Lisboa, a vida chata do estudante - funcionário público, e pronto: casa, Faculdade, café na Baixa onde não se era mais estudante, conferências" que eram para toda a gente, noites para dormir porque o dia era fatigante - enfim, a tal vida chata".
Falando com algumas pessoas que tiraram cursos superiores em Coimbra e outras em Lisboa, cheguei à conclusão de que: As que se licenciaram em Lisboa gostavam de se ter licenciado - em Coimbra, as primeiras estavam bastante felizes pelo facto de se terem formado em Coimbra (1), Este facto deve-se à "Deusa da mi­tologia Coimbrã que é a praxe"? (2) Acho que sim. O convívio en­tre alunos ou estudantes em Coimbra era completamente diferente do convívio entre estudantes noutra Universidade qualquer do país.
Quem nunca ouviu falar da "Queima das Fitas"? Alvo máximo da união entre estudantes na cidade do rio Mondego. João Falca­to, refere-se a esta festa nestes moldes: - "A Queima das Fitas é a despedida do estudante a Coimbra. Se é certo que entra sor­rateiramente para a praxe não dar por ele, esse anonimato não lhe agrada quando está prestes a abandonar a cidade. Então rodeia -se de barulho, quanto mais melhor. E estou em dizer que a Quei­ma das Fitas é isso: barulho, o triunfo do barulho. O estudante, que todos dêem pela sua próxima saída. Está quase formado, vai entrar na vida prática, é doutor. Devia o facto causar-lhe mui­ta alegria, em princípio as festas são organizadas com esse in­tuito, mas na realidade o que ele sente é uma tristeza. Daí, afogar-se em barulho e vinho para disfarçar essa tristeza".
Nas outras Universidades do país existem por acaso festas deste género? Parece-me que não e a razão, quanto a mim, é sim­ples: Só Coimbra foi protegida pelas mãos generosas da "Deusa -praxe".
As instituições onde não existem praxes académicas não têm tradição.

(1) No tempo em que a Deusa praxe" era a padroeira de Coimbra.
(2) "Deusa da mitologia Coimbrã que é a praxe" é uma expressão utilizada -por João Falcato em "Coimbra dos Doutores".
Inquérito
Segundo o inquérito que fiz a alguns elementos da FAP (pilotos, alunos pilotos e cadetes), apurei os se­guintes resultados: 80% das respostas obtidas, são completamente a favor das praxes académicas na Organização e fora dela. 10% são a favor, mas com algumas restrições. A quase totalidade des­sas restrições é respeitante aos inconvenientes das praxes, aos quais farei referência no penúltimo capítulo. 10% são contra. Estas percentagens são deveras significativas, se tivermos em conta que 50% das respostas ao inquérito foram dadas por alunos, que ainda só foram praxados.
Nas respostas ao inquérito, dadas pêlos alunos, há um facto que, não querendo ser tendencioso, me emocionou bastante: Nenhum aluno é frontalmente contra as praxes académicas. Este dado leva-me a escrever uma conclusão à "priori": As praxes na Organização estão a ser bem conduzidas (l). Quando os próprios alunos não são contra, quem mais o poderá ser?
Este inquérito vai em anexo (ANEXO A) e encontra-se no fim deste trabalho logo após a conclusão. São apresentadas as respostas exactamente como foram dadas, sem correcções de alguma espécie
(1) O inquérito foi feito entre os meses de Janeiro e Março do ano de 1981. Esta conclusão refere-se ao tempo em que o inquérito foi elaborado. O aspecto formal dos anexos A e B, não é con­forme os trâmites da tese, propriamente dita. Quer no campo gramatical quer no conteúdo. O questionário feito foi o seguinte:
1) O que é para si a praxe académica?
2) Quais as vantagens que vê na praxe?
3) Quais os inconvenientes?
4) É a favor ou contra a praxe?
Devido à minha completa ignorância em estatística, isto é, conhecimento nulo dos requisitos necessários para fazer um in­quérito, os dados obtidos são mera curiosidade.
CONCLUSÃO
Praxar "infras" não é contra a razão, porque de serem praxados, quando não lhes provenha utilidade também não lhes resulta dano algum. Na realidade é muito difícil que os novos alunos não tirem proveito algum das praxes académicas, porque "água mole em pedra dura, tanto lhe dá até que fura".

CAPITULO 2  -  VANTAGENS  -  INTRODUÇÃO
“Caçoar é dizer ou fazer alguma coisa só com o ânimo de brincar”. Daqui se interpreta que das caçoadas, por sua natureza, não deve resultar dano algum (ao caçoado).
As vantagens das praxes académicas são quase inumeráveis. Vou apenas salientar – aquelas que, no conceito das pessoas que foram entrevistadas e que afinal é o meu, têm mais utilidade para os "infras".
Inicialmente, o novo aluno não é conhecido por ninguém, salvo raras excepções que não interessam para o trabalho em curso.
Através das "actividades – convívio" que existem, graças às mãos tradicionais da praxe, os novatos passam a ter oportunidade de se conhecerem. Mas como se isso já não fosse o suficiente, vêm também a ter a honra de conhecer e conviver com os alunos mais velhos que neste caso serão os praxadores (l).
Essa forma de convívio inicial vem portanto servir de "car­tão de visita" para os mais novos.
É, sem dúvida, nas “sessões de praxe" (2) que se distinguem os indivíduos que necessitam de despertar para a vida, que se lhes depara futuramente dos que, se não forem devidamente orien­tados, se extraviam por completo, pois têm um grau muito elevado de vivacidade. A praxe também serve de teste. E uma altura propícia para se conhecerem melhor os novos alunos. Exemplificando: Aqueles que não trazem vícios da vida civil e que portanto, pou­co necessitam da orientação dada pêlos alunos mais velhos. São bastante raros estes casos, mas transcrevo vim exemplo que nos dá Octaviano Sá em "Nos Domínios de Minerva" – "Que discursos chei­os de "verve", graça, espírito, animador ao mesmo tempo de desassombro e descarno, pronunciou o que então era simples "novato" de direito!

(1) Praxador ou praxista é a pessoa que observa à risca e com fervor as praxes em todas as suas minúcias.
(2) "Sessões de praxe", são reuniões de convívio.


Aquela cara escanhoada, de óculos poisados sobre o nariz, dava-lhe aspectos de jocoso pregador, pelo que todos começaram a chamar-lhe o Padre-Zé, depois corrompido e simplificado no imorredoiro, consagrado e prestigioso sobrenome de Pad-Zé!
De tal maneira fez sucesso a sua Oratória que, logo no pri­meiro ano do curso universitário, ficou com direitos de "vetera­no", isento das "brincadeiras" da "praxe", então praticada a\ ri­gor pêlos demais escolares da Universidade".
As praxes académicas possibilitam o desenvolvimento e o aparecimento de várias características nos "recém chegados" a uma instituição: Capacidade física, intelectual e de encaixe, espírito de sacrifício, espírito de corpo e força de vontade.
A capacidade física é desenvolvida nas actividades físicas que são postas em prática nas "sessões de praxe". Ninguém duvi­da que a ginástica faz bem à saúde?!
A capacidade intelectual nos novatos, aumenta grandemente pois os veteranos ministram-lhes um determinado número de ensi­namentos "ab initio" que só os alunos mais velhos lhes podem dar (1). Esses ensinamentos vão fazer com que os novos alunos apreendam muito mais rapidamente certos conhecimentos que só muito mais tarde teriam acesso. Ê mais fácil, para um estudante, aprender uma coisa sobre a qual já ouviu falar da que estar completamente nas trevas quando ouve falar num assunto pela primei rã vez da boca dos mestres.
O poder ou capacidade de encaixe, desenvolve-se rapidamente, pois o novo aluno necessita de ouvir, dizer e fazer "coisas e loisas" que ria sua vida civil não ouvia, dizia ou fazia. Ê evidente, que esse género de conversas ou acções, não ultrapassando a lei da razão, só possibilitam a capacidade de encaixe do "infra".
(1) Os ensinamentos que os mais velhos ministram aos novatos, são geralmente, de cultura militar e aeronáutica.
O espírito de sacrifício é necessário a todos os homens para poderem vencer situações adversas. No caso concreto dos novos alunos, esse espírito é-lhes incutido nas praxes académicas. Por vezes, nas praxes, existem situações adversas que obrigam o nova to a aplicar-se, para as ter que ultrapassar.
O espírito de corpo aparece nos "infras" com o decorrer dos tempos, mas devido principalmente às mãos tradicionais da praxe. Acaso um homem necessita do espírito de corpo se não conhece mais ninguém? Porventura o novo aluno conhecia tão bem os seus colegas de curso se não fosse a existência da praxe? Para a íntegra convivência e amizade entre alunos é necessário haver espírito de cor­po. Ë sobretudo nas "sessões de praxe" que nascem os primeiros» "raios" deste espírito.
Para vencer qualquer "barreira" é necessário haver no homem força de vontade. Os novatos ao quererem ser militares e pilotos não pensam nas dificuldades que vão encontrar pelo caminho. Através da praxe, que por vezes é de uma certa dureza física, o alu­no é obrigado a pensar duas vezes no caminho que escolheu. Se acaso o quer seguir, necessita de muita força de vontade; pois começa a entender o velho ditado,"nem tudo são rosas".
O espírito criador também é incentivado aos "infras" nas
praxes académicas. Reforço esta afirmação com uni episódio narra­do por Octaviano Sá: - "Ora na história alegre da vida dos nossos escolares, há uma partida que auxiliou a celebridade do tradici­onal sino, sempre saudosamente referenciado.
Foi-lhe um dia roubado o badalo!
O caso ia matando de desgosto o conhecido "cabreiro" Berardo, fiel cumpridor do seu toque a horas precisas,...
Uma manhã, porém, tinha emudecido a "cabra"...
Os estudantes exultaram com o facto.
Em obediência à velha praxe, a partida teve um sucesso re­tumbante, porque dessa mudez resultou "o feriado" ambicionado".
Também no dizer de Trindade Coelho: - "a empresa de roubar o badalo da "cabra" não era tão fácil como pode parecer!..."
Um dos factores, que eu considero de maior importância para a vida de um piloto militar, é o respeito pêlos superior. Este factor é incutido aos novos alunos durante as "sessões de praxe". Para uma melhor compreensão desta grande vantagem, transcrevo de seguida, "ipsis verbis", uma carta de um velho "bacharel a Trindade Coelho: - "Eu conservo ainda pelo Veterano Coimbrão um tal respei­to, que não me lembro dele sem lhe fazer a continência, sem me desembuçar, - (o desembuçar-se um estudante, ou, se leva a capa ao ombro, o erguê-la um pouco acima do ombro, ainda hoje é a "conti­nência" que se faz aos lentes). Eu não sei se esta respeitável en­tidade (o veterano) existe ainda em Coimbra; se não existe já, se esta civilização que tudo abastarda e desnacionaliza a levou dian­te da sua rasoura niveladora, só tenho que lamentar os pais que têm de educar seus filhos em Coimbra, por ter desaparecido a auto­ridade académica que, caçoando o caloiro, lhe desenvolvia o espírito, que quando lhe cortava meio bigode o afastava de tavelagen» e dos prostíbulos, que dando-lhe um grau o incitava a estudar para vir a ser também um bom Veterano. Lamento os pais quê, nem mesmo indo com os filhos residir em Coimbra, podem substituir o Veterano no que ele tinha de mestre e protector; porque era a convivência literária com os Veteranos de todas as faculdades, que imprimia ao estudante de Coimbra, o tal quê que o distinguia de todos os demais estudantes do país".
Depois desta carta, Trindade Coelho acrescenta uma nota: -"Isso ainda hoje: o estudante de Coimbra não se confunde" (l).
Esta carta pareceu-me de uma importância capital, pois veio consolidar a opinião que eu tinha sobre o trabalho dos alunos mais velhos em relação aos mais novos.
O factor que estava em causa era, o respeito pêlos superiores. Que também é posto em prática nas praxes são o respeito que os "infras" têm em relação aos "senhores alunos" ou muito mais ainda em relação aos "senhores pilotos".
ESTATUTOS DE PRAXE
Os estatutos de praxe são regulamentos em que as praxes académicas se encontram estruturadas.
(l) No tempo em que haviam praxes em Coimbra.

Estes estatutos são uma vantagem para os praxados e praxadores; pois tanto uns como outros ficam a saber as "linhas com que se co­sem". Por este motivo, julguei conveniente introduzir este sub-ca-pítulo nas "Vantagens".
Existem várias instituições onde a praxe tem estatutos própri os, mas interessa—me focar ou referir, só os regulamentos que di­zem respeito à APA.
Segundo as afirmações do "Marechal de Praxe" da AFÃ, esses regulamentos são provisórios, isto é, podem ser alterados a todo o momento (1). Os estatutos foram feitos com o conceito dos fina­listas que se preocuparam sobretudo em amortecer o choque da me­tamorfose que o mancebo sofre ao entrar para a Academia.
Depois de terem sido criados os referidos estatutos na APA, * ainda não houve imposições do comando. Ora, este aspecto é bastan­te significativo; pois pode-nos dar uma ideia de quão vantajosas são as praxes e respectivos estatutos.
Para uma melhor compreensão do conteúdo dos regulamentos de praxe que tenho vindo a referir, apresento em anexo (ANEXO B), uma cópia integral dos regulamentos da APA. Este anexo encontra-se no fim do trabalho devido à sua extensão.
CONCLUSÃO
As praxes académicas, sendo nos seus justos limites, indicam: perspicácia, engenho e juízo no praxador. São uma forma de orientação, encaminhamento e luz para os novatos de qualquer instituição.
Todas as instituições onde existam praxes académicas, estas devem ser complementadas com regulamentos de praxe, feitos pêlos próprios alunos, como é óbvio.
O comando de uma instituição pode orientar os alunos mais ve­lhos de modo a evitar exageros de qualquer espécie.
(1) "Marechal de Praxe" é a entidade máxima de praxe na AFÃ e Aca­demia Militar.

CAPITULO 3  -  VANTAGENS   -   INTRODUÇÃO
" - Alto! Bicho ou caloiro?
Então na noite límpida, poética, no cenário augusto da cate­dral centenário do saber português, caíram sobre o recém-vindo as mãos brutais – perdão! - as mãos tradicionais da praxe.
Depois, com muita graça que só a eles próprios arrancava gargalhadas, levaram-no para uma república onde foi sujeito ao trata­mento próprio da situação de "mobilizado". E, para maior gáudio de todos, submetido a julgamento desrespeitado - pobre dele, acabadinho de chegar. As leis que o deviam reger daí em diante! A igno­rância dessas leis não podia beneficiar o infractor!
Encerrado num quarto saiu de lá nu para amplo salão iluminado por uma tosca vela, completamente cheio de sombras de estudantes embuçados que e mandaram sentar. Em frente, um tribunal constituí­do.
Com solenidade ridícula perguntaram-lhe o nome e disseram do delito de que vinha acusado. Depois obrigaram-no a sentar-se num vaso cheio de líquido nojento: o banco do réu! Dirigiram-lhe per­guntas e, sempre que respondia, insultavam-no com palavras duras, degradantes.
Finalmente, naquela soturna sala ia representar-se o último acto. O rapazinho, que noutra Universidade levara um ano a sonhar com aquela, foi condenado a ser selado! Estendido, nu em cima da mesa, seguro por dezenas de braços que queriam cevar na sua ver­gonha uns direitos aue a praxe lhes concedia, cobriam-lhe partes do corpo com cera derretida e escreviam nas suas costa.s palavras obscenas, sinais canibalescos.
Assim, o tal rapazinho, todo emoção, todo sentimento, sofreu humilhado os vexames que lhe quiseram infligir. As lágrimas reben­tavam-lhe mas havia que as esconder. Elas seriam motivo para mais humilhações, mais vexames.
Foi de lágrima a rebentar, de cabelo rapado e semblante transtornado que este tal rapazinho frequentou no outro dia o limiar da sua primeira aula nesta Universidade. E foi esta a sua vida em Co­imbra - até que, pelo menos, a deusa praxe o libertou: aulas ape­nas ".
Este episódio foi tirado do livro "Coimbra dos Doutores" e nele há aquilo que eu denomino de: Inconvenientes das praxes acadé­micas.
Os inconvenientes derivam todos da maneira como a praxe é praticada.
TIPOS DE INCONVENIENTES
Os exageros são condenáveis em todas as circunstâncias da vi­da humana.
O episódio apresentado na introdução a este capítulo, contém matéria relevante e é sobre ela que vou, desde já, fazer algumas considerações.
Vejamos "exempli gratia" este extracto: - "submetido a julga­mento por ter desrespeitado - pobre dele acabadinho de chegar! -as leis que o deviam reger daí em diante!". Demonstra que os regu­lamentos de praxe não estão a ser cumpridos. Se numa instituição existem estatutos próprios de praxe, esta só pode ser aplicada de­pois de ambas as partes (praxadores e praxados) estarem a par desses estatutos. O abuso do direito à praxe é condenável.
Acerca da frase que apresento de seguida também existe algo de medíocre: - "Dirigiram-lhe perguntas e, sempre que respondia, insultavam-no com palavras duras, degradantes". Uma caçoada de pa­lavras pode não ser ofensiva por sua natureza, mas sendo dita com certo tom de voz, que indique desprezo, ofende; e em tal caso, pás sã além dos limites e por conseguinte é proibida; quanto mais as palavras injuriosas.
Com este outro extracto "Assim, o tal rapazinho, todo emoção, todo sentimento, sofreu humilhado os vexames que lhe quiseram in­fligir. As lágrimas rebentavam-lhe mas havia que as esconder. Elas seriam para mais humilhações, mais vexames" atinjo talvez, um dos piores inconvenientes das praxes académicas: a humilhação do novo aluno. As praxes quando mal aplicadas podem ferir os sentimentos dos novatos inclusive causar-lhes problemas psicológicos, nomeada­mente recalcamentos.
A prática muito intensa da praxe pode levar ao cansaço físico e intelectual do novato. O exagero de "sessões de praxe" é sem dú­vida um aspecto muito negativo; pois pode causar a falta de rendi­mento dos novos alunos e, isso não é vantajoso nem para a institui cão nem para esses alunos. Se por acaso os "infras" já estão a vo­ar, este inconveniente, poderá tornar-se um atentado contra a se­gurança de voo. Ê evidente que este caso não se dá na APA. .
Outro dos inconvenientes das praxes, e que segundo a minha opinião acho lamentável que aconteça, é a falta de formação e por vezes recalcamentos que se evidenciam entre alguns praxadores, chegando mesmo à prepotência, e não medindo as consequências que daí poderão advir, fazendo-se valer dos seus direitos" de praxar. Gomo se pode imaginar, estes indivíduos são negativos a praxar.
Seguidamente vou abordar, um assunto que também considero de especial interesse pois ele é extremamente condenável: o reflexo da praxe na instrução. Ora, existem pessoas que podem interligar o comportamento do aluno em praxe com esse aluno em instrução. Como tenho vindo a afirmar, a função primeira da praxe é o auxílio ao novato e não o seu prejuízo. Em "In Illo Tempore1' de Trindade Co­elho, há um episódio que caracteriza bem o reflexo da praxe na instrução: - "Depois de nos cortarem o cabelo, a, gente ainda tinha de ir ao barbeiro essa noite, protegido por algum quartanista ou quin- tanista para se livrar das palmatoadas (castigo das trupes aos já esmonados) e ainda dava seis vinténs ao barbeiro para acabar a operação! E até o Fígaro se ria de nós e a troça à cabeça pelada dura vá na Universidade uns poucos de dias, - e um lente do 1º ano, o Bernardo de Albuquerque, marcava as esmonadas na caderneta e reprovava-os no fim do ano! Comigo não falhou a regra".
Aquilo que directa ou indirectamente se opõe à caridade, não pode ser objecto do direito de praxe.
Quem praxa deve saber praxar e saber parar quando têm que parar porque se ultrapassarem certas "barreiras", que têm vindo a ser focadas ao longo deste capítulo, dão origem a desentendimentos. Esses desentendimentos entre praxadores e praxados é tão negativo que por vezes "fervebant coques, bofetataeque sonabant" (1).
CONCLUSÃO
Aqueles que desejando praxar, ofendem, têm a nota de ignoran­tes, insensatos e faltos de educação.
O abuso da praxe é contra a razão, contra as leis divinas e humanas.
Só existem inconvenientes nas praxes académicas se houver exageros, abusos na sua aplicação. Os inconvenientes que foram debati dos neste capítulo não têm lugar, se forem respeitados os direitos humanos .
Os inconvenientes das praxes só começam quando acabam as van­tagens.

CONCLUSÃO

Mas... tudo muda. Tudo atraiçoa o homem. Até o seu passado. Já tinha pensado nisto várias vezes com aquela filosofia que é a da experiência dos outros. Mas agora começo a entrar nestas declarações com outra: a minha.
Fui a uma "sessão de praxe" há meses. Visita de saudade! De­sejava esta visita e temia-a. Lembrei-me dos meus tempos de "in­fra". Assim, à maneira de amortecedor de choque, dei uma volta por um local onde não havia ninguém e fumei um pensativo cigarro. Recordei em poucos minutos, os tempos em que eu era praxado. Depois de acabada a "sessão de praxe" disse para alguém: No meu tempo, não era nada disto!
Apesar de ter dito esta frase, estava perfeitamente conscien­te de que os objectivos dessa noite foram atingidos. Os meios para os conseguir foram diferentes pois o tempo não parou.
Mas... tudo muda.

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